O dia amanheceu como todos os outros no mundo comum — cinza, apressado, cheio de compromissos que pareciam urgentes demais para serem importantes.
A cidade ainda despertava, mas o som das buzinas e o rumor distante dos passos apressados já invadiam a rua. O ar estava frio o bastante para fazer a pele arrepiar, e uma neblina fina desenhava contornos imprecisos nas casas ao redor. Era como se tudo estivesse coberto por um véu, uma camada cinzenta que tornava cada movimento previsível e, de certo modo, sem vida.
Elena caminhava pela pequena varanda de casa com a xícara de chá nas mãos, tentando espantar o frio e o cansaço que não vinham do corpo, mas da alma.
O chá exalava um aroma suave de camomila com mel, e ela inspirou profundamente, como se quisesse guardar aquele pouco de aconchego por mais tempo. Mas, mesmo assim, a sensação persistia — um vazio silencioso, como se faltasse um pedaço invisível para que tudo fizesse sentido.
Foi então que percebeu.
Bem ali, na soleira da porta, repousava um envelope creme, selado com cera dourada. Gravado no lacre, um brasão: uma coruja coroada, pousada sobre um ramo de azevinho.
A luz pálida da manhã fez o dourado brilhar de forma quase hipnótica. Elena se agachou para pegá-lo, e notou que a cera parecia mais quente do que deveria estar naquela manhã fria — como se tivesse sido lacrado há poucos instantes.
Elena nunca tinha visto aquele símbolo, mas algo dentro dela sabia — aquilo não era publicidade, nem um convite para mais um evento chato.
Era como reconhecer um rosto que nunca se viu antes, mas que desperta uma memória antiga. Havia uma familiaridade estranha naquele brasão, como se o desenho da coruja carregasse uma história que ela, de alguma forma, já conhecia.
Era outra coisa.
Com as mãos ligeiramente trêmulas, quebrou o lacre. Dentro, um único papel dobrado com caligrafia firme:
“Elena,
O Portal do Bosque abrirá ao pôr do sol.
Se escolher atravessá-lo, siga a trilha das lanternas.
O Conselho dos Guardiões a aguarda no Corujal.
— Morgana Neveflor”
As palavras pareceram pulsar no ar, como se tivessem sido escritas não apenas para serem lidas, mas sentidas. Ao terminar a leitura, Elena percebeu um leve perfume no papel — algo entre madeira queimada e flores noturnas.
Preso ao bilhete, havia uma pequena chave dourada.
A chave era fria ao toque, mas quando ela a girou entre os dedos, teve a impressão de que um calor sutil se espalhava pela pele. O metal tinha um desenho intricado, com minúsculos símbolos gravados que ela não reconhecia, mas que pareciam contar uma história.
Ela a girou entre os dedos, como quem gira um pensamento proibido.
Uma parte dela queria rir da situação, jogar o envelope e a chave de lado e voltar para a rotina. Mas outra parte — aquela que ela mal ouvia há anos — gritava para não ignorar aquilo.
Não fazia sentido.
Não havia nenhum bosque por perto.
E, mesmo que houvesse… que portal seria esse?
Mas havia algo naquela carta — algo que parecia chamar não só pelo nome, mas pelo que estava esquecido dentro dela.
O nome “Morgana Neveflor” ecoava na mente de Elena como uma melodia antiga. “Guardião dos Guardiões”? “Conselho”? “Corujal”? Nenhuma dessas palavras se encaixava no mundo que ela conhecia, mas todas pareciam carregar um peso e uma promessa.
E, pela primeira vez em muito tempo, Elena sentiu aquela velha faísca de curiosidade.
Era a mesma faísca que, quando criança, a fazia acreditar que havia portas secretas atrás das estantes, que as sombras nas paredes podiam esconder criaturas amigas e que cada folha caída trazia uma mensagem do vento.
Talvez, pensou, fosse uma loucura.
Ou talvez… fosse exatamente o que estava esperando.
O resto da manhã passou de forma estranha. Elena tentava se concentrar nas tarefas comuns, mas seu olhar voltava sempre para o envelope e a chave sobre a mesa. Enquanto lavava a louça, imaginava a trilha das lanternas. Enquanto respondia e-mails, se perguntava quem eram os Guardiões. E, no fundo, sabia que não haveria desculpa ou compromisso forte o suficiente para impedi-la de ir.
Ao longe, jurou ouvir o canto distante de uma coruja.
O som veio carregado por uma brisa leve que fez a cortina balançar, trazendo um aroma diferente para dentro de casa — algo doce, quase como pinho e pão recém-assado.
O relógio marcava nove da manhã.
Faltava muito para o pôr do sol, mas, de algum modo, ela já sabia: à noite, seguiria as lanternas.
E talvez — só talvez — deixaria de ser apenas mais uma no mundo comum para se tornar uma Crédula.
📜 Cada história é um feitiço. Cada artefato, um portal.