A névoa que cercava o círculo ancestral foi se dissipando devagar, como se tivesse cumprido sua função. O ar estava mais frio, e Elena sentia cada passo reverberar no chão úmido da floresta. O Grimório em suas mãos pulsava levemente, aquecendo sua pele, como se fosse bússola viva a guiá-la por entre os caminhos invisíveis de FAR. As pequenas luzes prateadas reapareciam diante dela, sempre alguns metros à frente, convidando-a a continuar. A cada vez que tentava hesitar, elas tremeluziam, como quem a chamava com paciência e insistência.
Não sabia para onde ia, tampouco o que encontraria, mas a sensação de ser guiada lhe dava alguma segurança. Era como se o Reino a testasse, sim, mas também a acolhesse no processo. A floresta foi ficando mais silenciosa, o vento mais cortante. A brisa que antes cheirava a flores agora trazia o gosto metálico do gelo, e Elena se deu conta de que a paisagem estava mudando. As árvores tornavam-se mais raras, os troncos cobertos por cristais, e ao longe, um clarão azulado refletia a luz da lua.
Quando atravessou o último arco de galhos, seus olhos se abriram para um vale coberto de neve eterna. A lua cheia iluminava tudo em tons prateados, e bem no centro, um lago congelado se estendia como um imenso espelho natural. A superfície do gelo brilhava tanto que era difícil encará-la por muito tempo. Elena estremeceu. O frio não vinha apenas do ambiente, mas de dentro dela mesma, como se aquele lugar despertasse algo adormecido.
Aproximou-se da margem e, ao olhar para baixo, prendeu a respiração. O reflexo não mostrava apenas sua própria imagem. Havia várias versões de si mesma refletidas no gelo. Algumas riam com alegria genuína, gargalhadas puras que iluminavam os olhos. Outras, porém, sorriam de forma estranha, como se zombassem dela. Havia também versões que exibiam sorrisos vazios, de cortesia, como se estivessem tentando esconder algo por trás da máscara. Elena recuou um passo, o coração acelerado. O lago parecia saber demais. Sabia de suas noites em que rira para disfarçar a dor, de suas tentativas de se mostrar forte quando, por dentro, estava em pedaços. O gelo refletia tanto a luz quanto as sombras da sua alegria.
O vento soprou forte, e com ele veio uma risada. Não era maldosa, mas estranha: um riso que ecoava em todas as direções, ora infantil, ora grave, ora leve como um canto. Elena olhou em volta, mas não viu ninguém. A voz surgiu junto ao riso, não no ar, mas dentro dela:
— Alegria é liberdade... mas também pode ser prisão.
Ela apertou o Grimório contra o peito, como se pudesse se proteger.
— Quem está aí? — perguntou, tentando soar firme, mas sua voz tremia.
O reflexo no lago respondeu. Uma das versões de si mesma, aquela que zombava, moveu os lábios:
— Quem você finge ser quando ri?
Elena sentiu o sangue gelar. A pergunta atingiu fundo porque era verdadeira. Quantas vezes sorrira apenas para não preocupar a mãe? Quantas vezes gargalhara em rodas de amigos, mesmo sentindo um vazio que não queria admitir? Quantas vezes usara o riso como muralha para esconder a dor?
De repente, uma fenda luminosa surgiu sobre o gelo, formando uma trilha que atravessava o lago. As luzes prateadas que a acompanhavam alinharam-se sobre a fenda, indicando o caminho. Elena sabia que precisava atravessar. Respirou fundo, reuniu coragem e deu o primeiro passo sobre o gelo.
A sensação foi estranha: não era apenas caminhar sobre uma superfície lisa, era como pisar sobre lembranças. A cada passo, novas imagens surgiam sob seus pés. Viu-se aos oito anos, rindo alto com seus irmãos, sem medo de nada. O gelo brilhou forte e sustentou seu peso. Mas logo em seguida, viu-se aos dezessete, rindo em uma festa, tentando esconder as lágrimas que insistiam em cair depois de um coração partido. O gelo rangeu, rachando levemente sob seus pés. Elena se apavorou, mas não correu. Fechou os olhos e reconheceu a verdade: “Naquele dia eu não ria de alegria. Eu ria para não mostrar minha dor.” Ao admitir, a rachadura se fechou, e o gelo voltou a brilhar.
Ela entendeu. O lago não queria que negasse suas sombras, mas que as aceitasse. Seguiu adiante, enfrentando reflexos de momentos em que fora alegre de verdade e de outros em que sorrira apenas por conveniência. Cada vez que negava, o gelo ameaçava ceder. Cada vez que aceitava, firmava-se ainda mais.
No centro do lago, ergueu-se um grande espelho de gelo, tão alto quanto as árvores mais antigas da floresta. A superfície refletia não apenas seu corpo, mas sua alma inteira. Elena se aproximou e viu todas as suas versões ao redor, como se orbitassem sua imagem. Algumas choravam, outras zombavam, outras gargalhavam até perder o fôlego. E, no meio delas, um reflexo raro: seu próprio rosto iluminado por uma alegria genuína, tão pura que parecia nascer do coração e não depender de nada externo.
Uma lágrima escorreu pelo rosto de Elena, mas ela sorriu. Era esse o riso que queria guardar. Não o riso que mascara, nem o que fere, mas o riso que liberta.
O espelho brilhou intensamente, e uma figura se formou por trás dele: um vulto coberto por gelo e luz, de onde ecoava uma gargalhada profunda e acolhedora. Elena não viu rosto, mas sentiu a presença: não era inimigo, era Guardião.
— Aprendeste que até a alegria tem sombras — disse a voz. — Só quem aceita as duas pode ser livre.
O espelho de gelo se partiu em mil cristais cintilantes que flutuaram ao redor dela como estrelas caindo. Entre eles, um cristal maior caiu suavemente em suas mãos, moldado em forma de chave. Elena a colocou dentro do Grimório, que a recebeu como se fosse parte de si mesmo.
O vento soprou outra vez, trazendo uma gargalhada que se espalhou pelo vale, mas dessa vez não soava como zombaria. Era celebração.
Elena respirou fundo, o peito leve, como se tivesse soltado um peso invisível. O lago voltou a ser apenas gelo e silêncio, mas ela sabia: algo dentro dela tinha mudado. Deu um último olhar para o reflexo da lua sobre o lago e seguiu em frente, rumo à próxima trilha que se abria à sua frente.
A jornada estava apenas começando, e agora ela sabia que cada passo não seria apenas em FAR, mas dentro de si mesma.