Quando ergueu o queixo e respirou fundo antes de dar o primeiro passo, Elena pensou que estava apenas atravessando uma floresta. Só quando o pé tocou a terra macia, percebeu que também atravessava uma fronteira dentro de si mesma. As pequenas luzes azuis se alinharam como um cortejo silencioso, abrindo caminho entre troncos antigos que se inclinavam para escutá-la. O Grimório vibrava entre os dedos, quente como um coração que desperta. Ao redor, a noite parecia um tecido vivo, bordado de estrelas que respiravam devagar.
Ela olhou uma última vez para trás. Na distância, quase engolidas pela penumbra, as cinco figuras imóveis guardavam a clareira. Por um instante, sentiu a mesma pontada de dúvida que a fizera hesitar diante do portal. Depois, reparou no brilho frio da pedra cobrindo aquelas formas: não eram seres, mas sentinelas. Estátuas de alguma era antiga, erguidas ali para lembrar que o caminho não se abre com pressa. Um vento fino cruzou a clareira, roçando-lhe a nuca. A voz que escutara — aquele “bem-vinda” que não vinha de boca alguma — podia muito bem ter sido só o vento. Ou o próprio Reino, que não precisava de voz para falar.
As luzes adiante ondularam, pedindo que ela as seguisse. Elena obedeceu.
Caminhou devagar, como quem teme acordar um sonho. O chão exalava cheiro de terra molhada e pinho; a cada passo, folhas douradas estalavam sob suas botas como pergaminhos antigos. As árvores eram altas demais para que ela lhes visse o fim; seus galhos, entrelaçados, formavam arcos que lembravam portas. Às vezes, as luzes se afastavam um pouco, obrigando-a a acelerar o passo; outras vezes, aproximavam-se dos seus tornozelos como filhotes querendo colo. Em poucos minutos, Elena descobriu que aquelas fagulhas tinham humor, que não eram apenas faíscas, mas presenças. Quando ela respirava curto, tremiam. Quando respirava fundo, brilhavam mais.
Talvez tenha sido aí que começaram as lembranças.
Elena era a segunda de quatro irmãos. Não era a que chegara primeiro para abrir caminho, nem a que vinha por último para ser protegida. Cresceu na faixa de terra do meio — aquela em que se aprende a caber nos espaços que sobram. Chamavam-na de avoada. Dizia-se que vivia num mundo “só dela”, o que na boca de alguns soava como defeito. Por muito tempo tentou descobrir como se encostava os pés com força o bastante no chão para que parassem de dizer isso. Nunca conseguiu por completo. Em compensação, descobriu outros chãos: os que existiam dentro dos livros, os que moravam nos filmes que assistia repetidas vezes como quem reza, os que nasciam quando, sozinha no quarto, ela desenhava portais atrás das portas do armário.
Gostava do Natal com devoção. Não pela lógica dos presentes, mas pela promessa de que a luz sempre volta. Nas noites de dezembro, enquanto as janelas da vizinhança tremeluziam, Elena escrevia cartas que não enviava. Às vezes, endereçava-as a alguém inexistente; às vezes, a si mesma. “Querida eu, quando você se esquecer da sua magia, leia isto.” Nunca tinha coragem de reler. Guardava as cartas em caixas de sapato, amarradas com fita, como se fossem feitiços que poderiam se partir se expostos ao ar.
Na escola, aprendeu cedo a esconder certos brilhos. O professor que elogiava as respostas mais objetivas não entendia quando ela afirmava que às vezes a resposta melhor é uma pergunta. A amiga que a achava divertida pedia que ela fosse “menos intensa” nas sextas-feiras, quando todos só queriam rir. Os irmãos, amorosos mas práticos, sugeriam: “Você precisa ser realista”. Elena gostava da palavra “realidade”, mas preferia escutá-la com o acento que usavam nos livros: realidade com duas sílabas extras, como se coubesse tudo dentro dela. Um dia, rabiscou no rodapé de um caderno: “Nem toda realidade se deixa medir.” E fechou o caderno com a satisfação secreta de quem esconde um tesouro debaixo do assoalho.
Os anos trouxeram outras exigências: emprego, prazos, planilhas. Elena não detestava aquilo; detestava apenas quando achava que sua vida tinha sido reduzida àquilo. Havia dias em que voltava para casa com a sensação de ter esquecido algo essencial; ficava parada na cozinha, encarando a chaleira no fogão, como quem tenta recordar um sonho que não quer ser lembrado. Nesses dias, às vezes, ouvia ao longe o som de uma coruja. Não sabia se havia corujas no bairro. O som, de qualquer modo, servia de lembrança: há um portal, dizia-lhe sem palavras. E é você quem decide quando atravessá-lo.
As luzes à sua frente diminuíram a velocidade, como se tivessem percebido que ela estava considerando essas memórias. Elena agradeceu em silêncio. O Grimório vibrou na mesma cadência de seus passos, ajustando-se ao ritmo novo. Era um artefato bonito — mas “bonito” parecia pobreza perto do que ele era. A capa, de um couro antigo que refletia luz sem brilho, carregava símbolos que se moviam discretamente sempre que ela desviava os olhos. E havia ainda aquele jeito de estar vivo: o Grimório não era objeto, era presença. Tinha temperamento, paciência comedida, exigências indescritíveis. Exigia, por exemplo, que ela fosse honesta. Que parasse de fazer de conta que não se importava quando diziam que sua fé era infantil. Que assumisse, enfim, sua condição de crédula.
Tentou abri-lo. As páginas folhearam sozinhas, escolhendo um ponto que não existia um minuto antes. Traços prateados nasciam e se desmanchavam à medida que ela observava. Não eram linhas, não ainda; eram insinuações de linhas, como arabescos de fumaça sobre água. A pouco e pouco, tornaram-se formas: uma montanha coroada por auroras que dançavam como fitas; um espelho de água com reflexos dourados; um jardim em que cada flor parecia guardar uma memória; um bosque mergulhado em bruma onde o tempo, talvez, andasse mais devagar. Elena sentiu um sobressalto, não de medo, mas de reconhecimento. Nunca estivera ali. Ainda assim, uma parte dela conhecia cada um daqueles lugares.
Quis decifrar o sentido do desenho, e não conseguiu. Quanto mais olhava, mais os símbolos se desfaziam. O Grimório não permitia que ela o fechasse no quadrado de uma conclusão apressada. Era como se dissesse: não olhe com a cabeça. Anda. As luzes, cúmplices, se puseram em marcha de novo, e Elena foi. Caminhava sem tentar adivinhar a ordem dos fatos, sem exigir garantias. Andar, naquele momento, parecia a coisa mais parecida com rezar.
A trilha começou a descer. O ar ficou mais frio, e uma névoa fina subiu do chão, enrolando-se em torno dos tornozelos de Elena. Um cheiro de maresia veio de algum lugar impossível — não havia mar à vista — e trouxe lembranças de infância que ela não sabia guardar em palavras. Quis anotar. Com a mão esquerda, segurou o Grimório; com a direita, pousou a ponta dos dedos em uma página vazia. Não havia pena, não havia tinta. Mesmo assim, quando a pele encostou no papel, letras surgiram sozinhas: “Para a menina que acreditava antes de aprender a duvidar.” Elena não sabia que devia ao choro; também não sabia como conter. As letras continuaram nascendo, e ela entendeu que estava escrevendo para seu eu do passado. Não era uma carta longa. Era um toque. Uma promessa: “Eu voltei para te buscar.”
As luzes explodiram num brilho breve, como palmas discretas.
O chão adiante era atravessado por um tronco caído, polido pelo tempo. Elena firmou o pé, se equilibrou, cruzou-o como uma pontinha de bailarina. Do outro lado, o bosque se abria em uma clareira pequena, circular, onde um tronco velho, oco, jazia como um altar. Dentro dele, repousava uma poça de água límpida, tão quieta que parecia suspensa. Elena se inclinou. A água lhe devolveu o rosto — e o rosto de uma outra versão de si, mais jovem, com os olhos arregalados de quem ainda não aprendeu a se diminuir para caber. Ao redor do reflexo, flocos minúsculos de luz pousaram sobre a superfície formando, por um segundo, um desenho de estrela. Logo depois, o desenho se desfez e a água voltou a ser apenas água.
Ela não entendeu, mas sentiu. O peito se aqueceu de dentro para fora, como se alguém acendesse uma lamparina entre as costelas. A palavra apareceu sem aparecer: cerne. Não veio escrita na água, não brotou nas páginas, não soou no ar. Apenas se instalou nela, com a firmeza de um objeto pesado. O cerne — fosse lá o que fosse — tinha peso, e esse peso não a derrubava; a ancorava.
Podia ter pedido uma explicação. Podia ter exigido um manual. Mas o Reino parecia em paz com a sua ignorância, e ela também. Sabia que estava perto, e que “perto” em FAR não se media em passos, mas em presença. Talvez por isso o Grimório tenha parado de vibrar por um instante e apenas repousado, contente, como um animal que se deita acreditando no dono.
O caminho estreitou e subiu outra vez. As luzes escoltavam a subida como soldados gentis. À esquerda, um ramo se quebrou sem barulho, e um vulto pequeno — talvez um esquilo, talvez outra coisa — correu para dentro de um buraco. À direita, um círculo de cogumelos brancos desenhava um anel perfeito. Elena sorriu, reconhecendo o aviso, e preferiu contornar. Mais adiante, o ar se encheu de uma música tão baixa que ela quase a confundiu com o próprio sangue. Não vinha de instrumento nenhum; era uma vibração. Quando percebeu, caminhava na cadência daquele ritmo. Susto e alegria brincavam de se alternar.
As páginas do Grimório, sob sua palma, aqueceram. O brilho das letras prateadas reapareceu. Não eram mais imagens completas, mas detalhes. Uma veia de ouro escorrendo pela pétala de uma flor invisível. Um traço que podia ser uma pena dançando no vento. Um fragmento de mapa que se desenhava e se desfazia, como se dissesse: não te apresses. Um floco de gelo que não gelava, pousando na beira da folha e derretendo sem deixar marca. Elena inclinou o rosto, hipnotizada; e, quando ergueu os olhos, percebeu que a trilha a levara para um lugar de onde as árvores recuavam.
Era um campo pequeno, cercado por pedras cobertas de musgo. No centro, uma árvore solitária estendia galhos como braços. Em um desses galhos, pendia uma fita de tecido fino, velha demais para ter cor. O vento soprou, e a fita dançou. Havia um perfume no ar — não de flor, mas de folha. Azevinho, talvez, ou algo aparentado. O cheiro atravessou Elena como um reconhecimento. Pensou no lacre dourado, na coruja coroada, no bilhete que a chamara pelo nome. O peito ardeu de uma saudade que ela não sabia de quem era.
Quis falar, mas não havia o que dizer. O silêncio do lugar não era vazio; era generoso. A fita no galho se soltou por segundos suficientes para formar, no ar, uma curva que lembrava uma assinatura. Depois, caiu devagar e pousou sobre o Grimório. Quando Elena tocou o tecido, o brilho prateado nas páginas se intensificou; um símbolo apareceu e desapareceu depressa demais para que ela o registrasse. Não importava. O corpo entendera antes da mente. Ela estava sendo esperada — não ali, não ainda, mas logo.
Recomeçou a andar. A luz do céu, que até então se espraiava em tons de lilás e azul, começou a inclinar-se para um ouro muito pálido, como se um sol contido respirasse entre as nuvens. Não havia cansaço. Havia fome, mas não de comida; fome de mais caminho. O ar ficou levemente úmido, e uma bruma baixa começou a nascer no chão, estendendo-se na direção para onde as luzes apontavam. A bruma não era qualquer bruma; tinha densidade de sonho. Desenhava dedos que se desfaziam quando ela tentava fixá-los. A cada metro, o perfume de folhas se misturava a algo doce — talvez pão recém-assado, talvez memória.
Elena parou na beira daquela névoa e olhou para trás. As luzes que a haviam guiado até ali estacionaram atrás de si, como uma guarda. À frente, outras luzes — mais finas, mais altas — formavam um arco desfocado, semelhante a uma porta. Não soube dizer quando se percebeu sorrindo. Tinha medo — sempre há medo quando algo verdadeiro se aproxima —, mas o medo parecia uma capa leve, fácil de tirar com uma mão. Retirou-a sem cerimônia.
Abriu o Grimório uma última vez antes de avançar. A página estava em branco. Esperou um pouco, na certeza de que alguma letra surgiria, algum conselho, algum mapa. Nada. Em vez disso, sentiu o papel se aquecer de novo; e, naquele calor, reconheceu a confiança que não se aprende em manual. “Eu sei que você sabe”, dizia-lhe a ausência de letras. “Então, venha.”
Ela fechou o livro devagar e o manteve contra o peito, como se o guardasse dentro de si. Por um segundo, achou escutar passos do outro lado da névoa. Não eram passos pesados; eram compassados, firmes, como os de quem conhece o território e não precisa olhar para o chão. O vento trouxe um rastro breve de sinos longes — não de igreja, mas de trenó, desses que existem em histórias antigas em que a neve conversa com as folhas. Elena mordeu o lábio para não rir de si mesma e não chorar da mesma alegria.
— Eu estou aqui — disse baixinho, e não tinha a quem responder.
As luzes diante dela acenderam ao mesmo tempo, formando um desenho que não durou mais do que um suspiro. Parecia o contorno de um rosto. Talvez a impressão de uma coroa de ramos. Talvez nada disso. O desenho se desfez como quem sorri e se esconde. A bruma se abriu no centro, traçando um corredor estreito. E, por um instante que doeu de tão bonito, Elena teve a nítida sensação de que alguém, do lado de lá, erguia a mão para saudá-la.
Não havia mais por que esperar.
Ela entrou na névoa, e o mundo, por dentro, se inclinou como uma taça recebendo vinho. O coração batia devagar, grande, inteiro. O Grimório esquentou contra o peito como um sol de bolso. E então, muito perto e muito longe ao mesmo tempo, uma voz que não era feita de ar sussurrou seu nome.
Elena fechou os olhos para ouvir melhor. O perfume de folhas se tornou límpido, quase palpável. A voz disse mais uma coisa — uma frase tão curta que mais parecia um gesto:
— Lembra quem és.
Quando abriu os olhos, a névoa já não era só névoa. À frente, delineava-se a sombra de uma figura. Não era ameaça, não era pressa. Era presença. A fita que ela trazia na mão, sem perceber, tremeu sozinha, como se reconhecesse a dona de seu perfume.
Elena deu mais um passo.
A figura à frente ergueu a mão.
E a bruma sorriu.