O caminho de neve e gelo ficou para trás, dissolvendo-se lentamente em uma brisa morna que acariciava a pele como mãos invisíveis. Elena caminhava em silêncio, ainda com o coração acelerado pela travessia do lago congelado. O cristal em forma de chave repousava agora entre as páginas do Grimório, e vez ou outra ela o ouvia vibrar baixinho, como se fosse um riso distante lembrando-a de que havia vencido o primeiro desafio.
As luzes prateadas, sempre fiéis guias, reapareceram à frente, mais suaves, quase dançantes. O ar mudava a cada passo: o frio cortante cedeu lugar a um perfume doce, e a rigidez das montanhas deu espaço a um terreno mais macio, coberto por pétalas espalhadas como se o chão fosse um tapete vivo. Elena ergueu os olhos e sentiu o fôlego lhe escapar.
Diante dela se estendia um jardim sem fim. Flores de todas as cores e formas se erguiam em uma sinfonia vibrante: rosas azuis que pareciam cintilar ao luar, lírios dourados que pulsavam como pequenos sóis, margaridas prateadas que abriam e fechavam suas pétalas em ciclos apressados, como se vivessem dias inteiros em minutos. Havia também flores que exalavam um perfume suave, e outras cujo aroma era amargo, quase difícil de suportar. O contraste entre beleza e desconforto parecia pulsar em cada canto do jardim.
Elena caminhou entre as flores, sentindo-se observada. Não por olhos físicos, mas pela memória que parecia habitar cada pétala. Uma rosa se abriu diante dela, e, instintivamente, ela estendeu a mão e a tocou. Um calor suave percorreu seus dedos, e de repente não estava mais no jardim.
A cena que se formou foi a de sua infância: tinha sete anos e corria descalça pelo quintal de casa, rindo até perder o fôlego, com os cabelos desgrenhados e as mãos sujas de terra. Sentia-se inteira, livre, plena na alegria simples de existir. Uma gargalhada escapou de seus lábios no presente, ecoando pelo jardim. Mas quando recuou a mão, a imagem se desfez, e a flor se fechou, voltando a ser apenas um botão dourado.
Com hesitação, tocou uma segunda flor, desta vez murcha e escura. O impacto foi imediato. O peito apertou, e lágrimas brotaram sem aviso. Era ela, já mais velha, sentada sozinha no quarto, sentindo que não se encaixava em lugar algum, que não havia espaço para sua voz ou seus sonhos. O peso da solidão e da incompreensão caiu sobre ela como uma pedra. Elena afastou a mão de súbito, e a flor desfez-se em pó. Respirou fundo, tentando se recompor, mas já sabia: aquele jardim não era apenas um lugar de beleza, mas também um campo de provas.
O Grimório vibrou com mais força, e Elena o abriu. Páginas em branco começaram a se preencher com símbolos de flores, cada uma diferente, como se o próprio livro registrasse suas experiências. Ela percebeu então: cada lembrança vivida ali se tornava uma semente dentro do Grimório. Era como se sua história, antes fragmentada, começasse a ser costurada de volta, pétala por pétala.
Uma brisa suave soprou entre as flores, e com ela, uma voz doce e cristalina ecoou:
— Nem todas as memórias são suaves, mas todas são sementes da tua essência.
Elena ergueu os olhos e viu, entre as flores douradas, um brilho que parecia dançar. Não havia corpo visível, apenas uma presença luminosa que se movia com a graça de um raio de sol atravessando vitrais. Sentiu-se acolhida, quase como uma criança que reencontra o colo.
— Quem está aí? — perguntou, mesmo sabendo a resposta em seu coração.
— Sou quem guarda o que foi, para que o que és nunca se perca — respondeu a voz. — Teu caminho passa por aceitar tanto as flores que perfumam quanto as que ferem. És feita de ambas.
Elena sabia que precisava continuar. A trilha de luzes a conduziu mais fundo no jardim. A cada passo, flores se abriam diante dela, e ao tocá-las, novas memórias surgiam: risadas com amigos ao redor de uma fogueira, cartas escritas e nunca enviadas, olhares que a feriram, sonhos não realizados. Algumas memórias a enchiam de calor, outras de dor — mas todas a faziam entender que nada havia sido em vão. Cada instante, até os mais sombrios, tinha moldado quem ela era.
No centro do jardim, encontrou uma árvore colossal. Suas raízes brilhavam em dourado, e nos galhos pendiam flores que não pertenciam a nenhuma estação conhecida. Algumas estavam em botão, outras desabrochadas, outras murchas, e havia ainda flores que pulsavam como se estivessem vivas, guardando algo que ainda não havia acontecido. Elena aproximou-se, fascinada.
Ao estender a mão para uma flor dourada, ouviu novamente a voz:
— Escolhe aquela que desejas carregar. Mas saiba: a flor que guardares não é apenas memória. É também promessa.
Elena hesitou. Como poderia escolher entre tantas? Seus olhos foram atraídos por uma flor azulada, cujo brilho era suave e constante. Quando a tocou, sentiu não uma lembrança, mas uma sensação de futuro. Era como se tivesse vislumbrado, por um instante, a si mesma sentada à beira de um lago dourado, escrevendo em seu Grimório com um sorriso sereno. Não era um momento que já vivera, mas um que ainda viria. Uma promessa de paz, de completude.
Com lágrimas nos olhos, colheu a flor e a guardou no Grimório. Assim que a flor repousou nas páginas, o livro brilhou intensamente, e uma chave dourada se formou no espaço ao lado, moldada pela própria energia da memória.
O jardim inteiro suspirou, como se respirasse com ela. Flores se abriram em cascata, liberando perfumes diferentes, formando um coro de fragrâncias que a envolveu. A presença luminosa surgiu mais uma vez, agora em forma sutil, delineando uma figura feminina feita de pura luz dourada.
— Leva contigo esta chave, Elena — disse a Guardiã. — Porque a essência não se encontra fora, mas no que floresce dentro. Recorda: mesmo a dor pode ser jardim, se escolhida como semente.
Elena curvou a cabeça em gratidão. Sentia-se mais leve, mas também profundamente tocada. Não era fácil carregar todas as memórias, mas agora compreendia que elas não eram fardos, e sim raízes.
A trilha prateada se acendeu novamente, indicando a saída. Antes de partir, ela olhou para trás e viu as flores se fechando lentamente, como se voltassem a dormir, aguardando a próxima vez que alguém ousasse atravessar aquele jardim.
Com o Grimório mais uma vez vibrando em suas mãos, Elena seguiu em frente. A chave dourada brilhava nas páginas, ao lado da chave de gelo. E, no fundo, ela sabia: cada desafio revelava não apenas um Guardião, mas também um pedaço de si mesma.
Enquanto a brisa carregava o perfume das flores para longe, uma pergunta silenciosa se instalou em sua mente: quantas partes de si ainda precisaria encontrar antes de descobrir seu verdadeiro cerne?
E assim, entre luz e sombra, Elena deu o primeiro passo rumo ao próximo mistério que a aguardava em FAR.