A trilha de luzes conduziu Elena até o lugar onde a floresta parecia recolher a própria respiração. Era como se o bosque inteiro a observasse sem olhos, como se as raízes conversassem num idioma grave, antigo, que não precisava de som. A névoa erguia-se do chão em colunas delicadas, aprendendo a andar como crianças recém-nascidas; enroscava-se nos troncos, lambia a casca úmida, dissolvia contornos e devolvia segredos aos lugares onde eles haviam nascido. O coração de Elena, nesse ar de vapor prateado, bateu mais devagar, não por fraqueza, mas por reverência.
No centro da clareira, um círculo de pedras antigas aguardava. Não eram brancas, nem cinzas, nem negras — eram a cor do tempo, cobertas por musgos que, dependendo do ângulo, cintilavam com um dourado discreto, como brasas guardadas sob cinza espessa. Aquele brilho era a memória do fogo, pensou Elena, a prova de que nem tudo que parece adormecido está frio. As pequenas luzes azuis, que se comportavam como guias e cúmplices, pousaram sobre as pedras, uma a uma, até que o círculo se tornou um colar de estrelas cansadas e felizes.
Ela parou no limiar. O ar tinha cheiro de folha amassada e de pão recém-saído do forno — início e casa ao mesmo tempo. O Grimório, firme contra o peito, aquecia-lhe as mãos até os dedos formigarem. Parecia respirar com ela. A sensação de estar diante de algo inaugural, e ainda assim familiar, percorreu-lhe os ossos como uma música que não se ouve há anos e, ao primeiro acorde, devolve nomes a lugares esquecidos dentro de nós.
Entrou devagar. A névoa, obediente, abria-se diante de seus passos e fechava-se logo depois, como véu zelando o sagrado. Cada pedra, de perto, trazia pequenos sulcos que lembravam escrita — não letras que as escolas ensinassem, mas linhas que o tempo caligrafou com paciência. Elena teve vontade de passar os dedos nessas estrias e, por um instante, receou profanar o lugar; a intuição, porém, a conduziu com delicadeza. Tocou. O musgo devolveu um frescor que subiu-lhe pela palma, como um copo de água bebido de olhos fechados.
No exato centro do círculo, o Grimório mudou de pulso. Não era mais o tremor urgente da travessia, nem a vibração ansiosa das primeiras pistas. Agora, batia em compasso seguro, grave, como um segundo coração se ajustando ao primeiro. Elena abaixou a cabeça, como se ouvisse um conselho que chegava sem palavras, e foi então que percebeu a presença.
Não foi uma figura que apareceu; foi a ausência deixando de ser ausência. De dentro da névoa, uma forma insinuou-se com a calma de quem já está ali antes de qualquer chegada. Era alta, envolta em um manto cuja trama lembrava inverno — não o inverno que congela, mas o que protege, acolhe, conserva a chama. Não havia rosto nítido, nem detalhes aos quais a mente de Elena pudesse se agarrar. Havia, no entanto, a certeza inconfundível de que alguém a via por inteiro. A forma ergueu a mão, e o círculo de pedras respondeu com um calor antigo, como se reconhecesse uma dona.
Elena pensou em se curvar, mas seu corpo escolheu apenas respirar. Entre o impulso e a respiração, a voz veio. Não de fora — de um lugar que parecia habitar o interior do seu nome.
— Você chegou.
Não havia pergunta, não havia dúvida. Era declaração. Elena assentiu sem mover a cabeça. A forma inclinou levemente o que seria o rosto, um gesto que, se fosse escrever, teria a elegância de uma assinatura antiga.
— Em FAR, toda visitante traz uma pergunta que crê ser a primeira — continuou a voz. — Mas o Reino só responde quando encontra o que veio antes da pergunta.
Elena não soube pensar essa frase; soube senti-la. A pele arrepiou, o estômago sossegou, um espaço abriu-se entre as costelas. O Grimório estremeceu de leve. Ela o abriu — não por vontade, mas por inevitabilidade — e as páginas, que horas antes tinham sido mapas de fumaça, agora mostraram um único símbolo: um círculo feito de névoa, com cinco chamas mínimas pairando ao redor. O desenho desfez-se como respiração sobre vidro e, no seu lugar, surgiram imagens tão breves quanto verdadeiras: um espelho de superfície fosca, um ramo florido de perfume indecifrável, uma rosa de azul impossível, um lago imóvel como o pensamento antes do pensamento. Elena quis decifrar e, no querer, as imagens se apagaram — como se o livro sorrisse do seu ímpeto apressado.
— O seu caminho não é um mapa — disse a voz. — É um rito.
A palavra pousou entre as duas como um selo de cera quente. Rito: não instrução; passagem. Não regra; ritmo.
Elena engoliu com cuidado, como quem segura um cálice de borda fina. Quis perguntar “que rito?”, mas a pergunta pareceu menor que a boca. Em vez dela, outra veio, quase um sussurro:
— O que eu devo fazer?
As luzes pousadas nas pedras ergueram-se juntas, como pássaros que decidem voar ao mesmo tempo. Desenharam, no ar, o contorno de um arco invisível, um caminho curvo que não apontava lugar algum e, ainda assim, conduzia. A voz, paciente, vestiu as sílabas de um gesto:
— Você veio buscar respostas. Vai encontrar tarefas.
“Tarefas.” A palavra não cheirava a obrigação; cheirava a travessia. Não era o peso mecânico do fazer pelo fazer, era o fio delicado do fazer para lembrar. Elena guardou-a como quem guarda um amuleto dentro do casaco, ao alcance do coração.
— Onde? — ela insistiu, quase com medo de interromper algo precioso. — Para onde eu devo ir?
A névoa moveu-se como tecido fino ao vento leve. O círculo respirou. Um traço de luz nasceu no chão, sutil, conectando o ponto onde ela estava a uma abertura entre duas pedras mais baixas. Não era uma seta; era uma permissão.
— O que eu procuro? — a boca falou antes que a hesitação a alcançasse.
— Quem você é — respondeu a voz, sem hesitar. — E o que precisa perder para lembrar.
O corpo de Elena tremeu como corda pinçada. “O que precisa perder.” Lembrou-se das cartas guardadas em caixas de sapato, com laços de fita que nunca abrira por medo de reaprender a doer. Lembrou-se dos nomes que aceitou por hábito: avoada, intensa, infantil. Lembrou-se do riso usado como capa em dias em que a alma pedia abraço. Lembrou-se de relógios. Tantos relógios. O Grimório esquentou como um pequeno sol e, nas bordas das páginas, um brilho quase invisível começou a pulsar — maré em noite quieta.
— E se eu falhar? — perguntou, sem disfarçar a criança que pedia a mão para atravessar a rua.
— O rito não falha — disse a voz. — Ele se repete, até que a alma saiba o caminho.
A resposta era descanso e desafio. Elena soltou o ar que prendia sem perceber. Um vento que não existia mexeu na beira do manto da figura. A névoa, cúmplice, abriu as costuras e revelou, por um instante, um segundo círculo, menor, inscrito dentro do primeiro. A luz no chão intensificou-se e desenhou uma linha tênue até a passagem entre as pedras.
— Você recebe este chamado — disse a voz. — Não por acaso, nem por adiantamento. Recebe porque o tempo, às vezes, se dobra para caber no coração que diz sim.
Elena fechou o Grimório com o cuidado de quem apaga uma vela com os dedos — sem vento, sem pressa, sem apagar a chama que fica por dentro. A gratidão subiu-lhe como calor depois do frio. A figura recuou — ou a névoa avançou, era impossível dizer. Ficou um perfume de folha e azevinho, claro como lembrança boa. Um toque antigo pousou-lhe na nuca: proteção sem posse.
— Haverá espelhos que exigem riso e coragem — disse a voz, agora mais baixa, como quem confia segredos só audíveis por quem já os carrega. — Haverá flores que guardam o que você esqueceu. Haverá um impossível que pede o nome. Haverá águas que distinguem sonho de fuga. Caminhe.
As luzes levantaram voo do círculo e voltaram a pairar sobre a trilha. Elena compreendeu: o círculo era um começo formal. Um rito de entrada. Agora, a jornada deixava de ser visita e se tornava compromisso. Ficou de pé por mais um instante, os pés bem plantados, como quem assina com o corpo. Depois, virou-se para a abertura entre as pedras. A névoa ali era mais clara, como tecido fino visto contra o sol escondido.
Deu o primeiro passo. No segundo, ouviu — de longe ou de dentro — o tilintar de um sino pequeno. No terceiro, percebeu o chão mudar de pele: a terra deu lugar a uma superfície fria e lisa, como vidro ou gelo. Uma friagem brincalhona subiu-lhe pelo tornozelo, e ela riu sozinha, sem motivo que pudesse oferecer a terceiros. O riso não era fuga; era o corpo dizendo “estou aqui”.
— Então é por aqui — murmurou, para ninguém e para tudo.
O caminho respondeu com um lampejo azul. A névoa fechou-se atrás dela como cortina após o prólogo. A luz do céu, apesar de escondida, inclinou-se para um ouro levinho, quase uma promessa atrás das nuvens. A cada passo, lembranças pequenas — e por isso mesmo sagradas — vinham e iam como pássaros indecisos: um cheiro de bolo com casca queimada, um brinquedo perdido que só existia quando ela fechava os olhos, um par de botas vermelhas que nunca couberam em nenhum uniforme. Elena não os prendeu; deixou que pousassem e partissem, como se sua pele fosse um galho confiável.
A trilha afunilou entre dois rochedos cobertos de líquen. As luzes voaram mais alto e, por um instante, formaram no ar um desenho que lembrava a borda de um espelho antigo — moldura sem espelho, ausência convocando presença. Elena se aproximou. A superfície diante dela não era água, nem vidro. Era algo entre os dois: um véu de brilho duro que refletia e, ao mesmo tempo, guardava. Chegando mais perto, viu-se refletida com uma leve distorção — a boca um pouco mais leve do que se sentia, os olhos mais sérios do que gostaria. O reflexo sorriu antes dela. Elena retribuiu. No canto direito, um segundo contorno apareceu e sumiu, rápido demais para ser entendido. Uma gargalhada miúda — a dela? — escapou. Coragem e alegria trocaram de lugar por um segundo, e o coração brincou de perder o compasso para, em seguida, achá-lo mais inteiro.
Ela ergueu o Grimório. O livro, como quem entende a hora de falar, abriu-se sozinho numa página sem letras, mas com a superfície um pouco granulada, sedenta de pele. Elena pousou a ponta dos dedos. A sensação foi de água morna encontrando mão fria. Não havia pena, não havia tinta, mas palavras apareceram sem esforço, linhas finas surgindo como geada sobre a superfície. Não eram frases longas. Eram gestos: “Não fuja da alegria quando ela vier.” “O riso é um espelho também.” “Você não precisa disfarçar o peso com leveza para ser leve.” Ao ler, reconheceu não a autoria, mas a origem: vinham de um lugar onde ela sempre soube, e só tinha esquecido de confiar.
O espelho-que-não-era-espelho respirou. A superfície ondulou sem se quebrar, devolvendo-lhe um reflexo diferente: a Elena de antes, a que acreditava em portas secretas atrás das estantes, a que conversava com as luzes do Natal como quem agradece parentes invisíveis. Viu-se criança, com as mãos sujas de tinta, rindo sem pedir desculpa. Um vento gelado, travesso, roçou-lhe a bochecha como um estalo de neve que não dói. E a trilha, adiante, piscou duas vezes — convite e desafio.
Elena fechou o livro devagar e o trouxe ao peito, como quem guarda um animal que confia. Deu mais um passo. O frio sob as botas cantou baixinho, um assobio fino que lembrava melodia. Houve, de repente, a vontade de correr — não para fugir, mas para alcançar a vida por trás do véu. Ela conteve a pressa com carinho: preferiu caminhar como quem dança a primeira música da noite, o corpo inteiro presente, o tempo obedecendo ao pulso do coração e não ao contrário.
Atrás dela, a claridade do círculo sumiu na parede de névoa. À frente, o caminho desenhou uma curva doce e, do outro lado da curva, algo brilhou como astro preso ao chão. Era uma superfície de gelo tão limpa que parecia céu deitado. Nele, um reflexo desconhecido esperava — não de coisas, mas de risos que ainda não tinham nascido. A pele de Elena formigou como quando uma notícia boa se aproximou e, antes de chegar, pediu silêncio.
Ela pousou a mão no peito, sentindo o Grimório como chama domesticada. Respirou fundo. O ar entrou como se abrisse janelas por dentro. Uma lembrança da voz, agora distante e dentro, repetiu a frase como bênção que cabe em qualquer dia:
— Lembra quem és.
Elena ergueu os olhos para a trilha. As luzes alinharam-se como guias de uma pista de gelo onde o vento aprende a brincar. Uma risada baixa — que era dela e, de algum modo, do Reino — pulou para fora da boca antes da primeira palavra. E, com a paz de quem sabe que os medos também a amam, deu o passo que separa o antes do durante.
A superfície devolveu-lhe um brilho azul-estrela.
E, no reflexo que se formou por um segundo e fugiu, dois olhos — alegres demais para serem apenas dela — piscaram como quem diz: vem.
(continua…)