O silêncio que seguiu à travessia era tão profundo que Elena quase acreditou que o mundo tivesse parado de existir. Seu corpo ainda vibrava da passagem, como se estivesse feito de luz líquida prestes a se dissolver. O coração, acelerado, batia como um tambor em uma cerimônia esquecida. Quando finalmente ousou abrir os olhos, deparou-se com a clareira iluminada por uma luz suave que parecia não vir de sol algum. O céu tinha uma tonalidade impossível de nomear, algo entre o azul profundo da noite e o lilás de um amanhecer eterno.
Foi então que os viu. Cinco figuras imóveis a rodeavam. Silhuetas altas, encapuzadas, que, por um instante, ela acreditou serem os Guardiões que a carta mencionava. O coração apertou, o ar lhe faltou por um segundo, e a memória daquela voz ecoou em sua mente: “Bem-vinda, Elena. Aqui começa tua verdadeira jornada.”
Ela deu um passo à frente, hesitante. As figuras não se moveram. O vento soprou suavemente, e um raio prateado caiu sobre uma delas, revelando o que de fato eram. Não eram seres vivos, mas estátuas. Gigantes de pedra cobertos de musgo e runas cintilantes, representando cinco guardiões ancestrais que ela ainda não conhecia. Estavam dispostos em círculo, como sentinelas erguidas há séculos para guardar a entrada daquele mundo. Seus olhos esculpidos brilhavam fracamente, como se uma chama interior ainda os mantivesse vivos de algum modo.
Elena aproximou-se de uma das estátuas e passou a mão sobre a superfície fria. As marcas gravadas pareciam pulsar sob sua pele, despertando memórias que não lhe pertenciam. Sentiu-se observada, não por algo hostil, mas como se o próprio Reino a estivesse testando. O sussurro da voz voltou, desta vez tão suave que quase se confundiu com o farfalhar das folhas: “A jornada começou.”
Foi nesse instante que o Grimório em suas mãos tremeu. O artefato, até então silencioso, vibrava como se tivesse acordado. Elena olhou para ele, assustada, mas não havia dúvida: o Grimório queria lhe dizer algo. As páginas se abriram sozinhas, agitadas por um vento que não existia, e símbolos de prata começaram a brilhar entre as linhas em branco. Ela não compreendia o significado, mas sentia, em seu íntimo, que aquilo era um chamado.
De repente, pequenas luzes azuis começaram a surgir no ar. Primeiro, uma, depois outra, até que uma trilha inteira cintilava diante dela, como vaga-lumes organizados em um desenho secreto. Elas flutuavam suavemente, indicando um caminho para fora da clareira, para dentro da floresta.
Elena respirou fundo. Tudo nela hesitava. Parte de si desejava sentar-se no chão, diante das estátuas, e esperar que os Guardiões viessem até ela. Mas o Grimório pulsava em suas mãos, e as luzes insistiam em se mover, como se perdessem paciência. Era como se o próprio Reino tivesse pressa em conduzi-la.
“Então é isso”, murmurou para si mesma. “Vocês não virão até mim. Eu preciso ir até vocês.”
Com passos cuidadosos, ela começou a seguir as luzes. O chão parecia diferente a cada metro: ora coberto de folhas douradas que rangiam como velhos pergaminhos, ora de musgo úmido que silenciava seus passos como se pedisse reverência. O ar tinha cheiro de terra fresca misturado a incenso, como se a floresta fosse um templo vivo.
As árvores se inclinavam suavemente conforme ela passava, e Elena teve a impressão de que algumas lhe abriam passagem de propósito. Outras, no entanto, pareciam testar sua coragem, erguendo raízes grossas como muralhas diante de seus pés. Mais de uma vez ela precisou escalar ou se abaixar, como se o próprio caminho a obrigasse a provar resiliência.
Enquanto avançava, percebeu que as luzes não eram apenas guias. Cada uma delas pulsava em sincronia com seu coração. Quando ela hesitava, perdiam brilho. Quando respirava fundo e retomava a confiança, brilhavam mais forte. Eram como pequenos espelhos de sua alma, lembrando-lhe de que aquela não era apenas uma jornada pelo Reino, mas uma travessia interior.
O Grimório continuava vibrando, às vezes mais forte, às vezes suave, como se reagisse a cada decisão que ela tomava. Elena arriscou abri-lo uma vez mais. Em suas páginas, traços prateados haviam se formado, como mapas que se redesenhavam a cada instante. Não mostravam rotas fixas, mas símbolos enigmáticos: uma montanha envolta por auroras, um lago dourado, um jardim florido, um bosque encoberto por brumas. Lugares que pareciam lhe chamar, ainda que nunca os tivesse visto antes.
Ela entendeu, então, que o caminho diante dela não terminava ali. Aqueles símbolos escondiam pistas, respostas, ou talvez provações. Quem afinal eram os Guardiões? Estariam à espera nesses lugares? Ou seriam apenas reflexos de algo que ela precisaria desvendar dentro de si mesma?
Por mais que tentasse decifrar os sinais, nada fazia sentido. Mas algo no peito a fez estremecer. Cada passo que dava parecia mergulhá-la mais fundo nas entranhas daquele Reino misterioso — e também dentro de sua própria essência. Intuiu que o Reino não lhe daria respostas prontas. Precisaria merecê-las.
As luzes seguiram até a borda da clareira e começaram a se dispersar. O último brilho suspenso cintilou diante dela antes de mergulhar floresta adentro, sumindo entre sombras azuladas. Elena hesitou, mas o corpo parecia ser puxado para frente por algo invisível. Não havia retorno possível.
Parou por um instante, fechou os olhos e respirou fundo. Recordou-se do som da coruja no mundo comum, do bilhete com seu nome, da chave que abrira o portal, do calor da travessia. Tudo parecia conspirar para aquele momento. Não era acaso. Era destino.
Quando abriu os olhos, as luzes reapareceram, mais vivas do que antes, como se celebrassem sua decisão. O Grimório, aberto em suas mãos, deixou escapar um brilho prateado que iluminou a trilha.
Elena ergueu o queixo, respirou fundo e deu o primeiro passo em direção ao desconhecido.
E assim, sua verdadeira aventura começou.
- Aqui o feitiço vira papel e o papel vira portal -